sábado, 27 de março de 2010

Voce sofre de Reminiscências?

Primeira versão do pai: inesquecível

D. é uma mulher em torno dos seus 40 anos, profissional liberal bem sucedida, casada há uns 20 anos e mãe de dois filhos adolescentes. O encontro com um "namorado" de adolescência em uma festa que reuniu a sua antiga turma de colégio secundário, e o fato de ter "ficado" com ele, funcionou como um esbarrão no real que, além de desarranjar, colocou em questão aquilo que ela tão cuidadosamente construíra nos últimos tempos, seja a nível familiar, seja a nível profissional. A partir deste real, 'real do sexo', ela vai se re-interrogar sobre “quem ela é” e sobre “o que quer”. Isso a leva a demandar uma segunda fatia de análise, já que passara pela experiência de uma primeira análise que durara alguns anos e que ela dera como concluída.

O encontro com o “namorado” da adolescência — alguém quem ela desejou, mas que evitou namorar — fez com que D. retornasse a uma época de sua vida que julgava resolvida, levando-a a "remexer no baú" e a fazer sair dele as dificuldades que tivera com o pai durante alguns e longos anos de sua vida. Seu pai, sujeito a altos e baixos, a insultava e humilhava nas suas tentativas de ter uma vida afetiva, ao mesmo tempo em que se orgulhava de seu desempenho escolar.

O reencontro com esse amor, marcado na adolescência pelo impossível, deu lugar a sentimentos de culpa, de expectativa e a auto-recriminações, uma vez que ela lastima ter se exposto perante os outros ao ter "ficado" com ele; no entanto, o efeito maior desse encontro foi o de produzir um retorno ao passado, uma espécie de adesividade ou de fixação ao passado. A partir daí, poderíamos dizer que D. "sofre de reminiscências", reminiscências que a ocupam de tal modo que as pessoas de sua convivência cotidiana vêm se incomodando com as suas mudanças: tomada por lembranças, ela muitas vezes se afasta de atividades que lhe eram cotidianas, e isso perturba as pessoas que lhe são próximas. Em frente a essa versão do Outro Paterno, e ao modo como ela absorve o sujeito, evocamos Freud quando define como histérico aquele sujeito que "sofre de reminiscências". Neste sentido, no baú da histérica encontramos o pai e ele parece inesquecível.

A hipótese de que o sofrimento por reminiscências é a causa da histeria localiza-se nos primeiros escritos freudianos. A primeira formulação da expressão, salvo engano, encontra-se em "Sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos: comunicação preliminar", escrita por Breuer e Freud em 1893. A questão é apresentada nos seguintes termos:

"[...] podemos inverter a máxima 'cessante causa cessat effectus' ['cessando a causa cessa o sofrimento'] e concluímos dessas observações que o processo determinante continua a atuar de uma maneira ou de outra durante anos ¾não indiretamente, através de uma corrente de elos causais intermediários, mas como uma causa diretamente liberadora ¾ da mesma forma que um sofrimento psíquico que é recordado no estado de vigília ainda provoca uma secreção lacrimal muito após o fato. Os histéricos sofrem principalmente de reminiscências." (Freud, 1893, p. 48)

Para explicar a sobrevivência dessas lembranças, que parecem não estar sujeitas a um desgaste ou esvaecimento, Freud e Breuer sustentam que "um corpo estranho" opera incessantemente como causa estimulante da doença até que o sujeito se liberte dele ou, em outros termos, "os pacientes histéricos sofrem de traumas psíquicos incompletamente ab-reagidos". (Ibid., p. 47;50)

À guisa de exemplo, Freud menciona o caso da mãe de uma criança adoentada que, quando o filho adormeceu, concentrou toda a sua força de vontade em manter-se imóvel a fim de não acordá-la. Por causa disso, produziu um ruído estalejante com a língua (um exemplo de contra-vontade histérica) que se repetiu numa ocasião subseqüente, na qual ela desejava manter-se perfeitamente imóvel. Daí surgiu “um tique que, sob a forma de um estalido com a língua, ocorreu durante um período de muitos anos sempre que se sentia excitada". (Ibid., p. 45)

Para os autores da “Comunicação Preliminar”, o trauma psíquico (a doença do filho) — ou mais precisamente a lembrança do trauma — atua como um corpo estranho que, mesmo muito depois de sua entrada, deve continuar a ser considerado como um agente provocador, pois ainda se acha em ação. (Ibid., p. 46) Freud, que nos idos de 1893 está apresentando a sua terapêutica ao mundo científico, sugere então que "o processo psíquico que originalmente ocorreu deve ser levado de volta ao seu status nascendi e então receber expressão verbal." (Ibid., p.47) Portanto, é preciso que o sujeito evoque a lembrança do fato (a doença do filho) que provocou o sintoma (o estalido com a língua) e desperte a emoção que o acompanhou, traduzindo-a em palavras.

Para o psicanalista dos Estudos sobre a Histeria, se a reação foi reprimida, a emoção permanece vinculada à lembrança e, nesse sentido, ab-reagir, isto é, reagir posteriormente, pode implicar em ir "das lágrimas a atos de vingança". (Ibid., p. 48). Todavia, continua ele, "a linguagem serve de substituto para a ação, [...] falar é por si mesmo o reflexo adequado, quando, por ex., essa fala corresponde a um lamento ou a enunciação de um segredo atormentador, por ex., uma confissão." (Ibid.) Ele observa que a linguagem reconhece a distinção entre uma ofensa que foi revivida, até mesmo por meio de palavras, e aquela que teve que ser aceita. Curiosamente, ele destaca o fato de que o uso lingüístico descreve uma injúria que foi sofrida em silêncio como “uma mortificação” (Kränkung), termo que, em alemão, se presta a um jogo significante com o “fazendo adoecer”. (Ibid., p. 49)

Essas manifestações levam Freud (1893) a postular que a divisão da consciência, tão marcante nos casos clássicos conhecidos sob a forma de double conscience, encontram-se presente num grau rudimentar na histeria. (Ibid., p. 53) Assim, “um grave trauma (tal como ocorre na neurose traumática) ou uma supressão laboriosa (como de uma emoção sexual, por ex.) pode ocasionar uma separação de grupos de idéias mesmo em pessoas que são, sob outros aspectos, não afetadas; e isso seria o mecanismo da histeria psiquicamente adquirida.” (Ibid., p. 52) Em vista disso, o psicanalista conclui que, “se a lembrança do trauma psíquico deve ser considerada tão atuante quanto um agente contemporâneo, como um corpo estranho, muito depois da sua entrada forçosa, e se, não obstante, o paciente não tem nenhuma consciência de tais lembranças ou do surgimento delas — então devemos admitir que idéias inconscientes existem e são atuantes.” (Ibid., p. 276)

Freud mostra "os poderes da palavra". Se o esquecimento vai ganhar o estatuto de ato falho e fazer parte das formações do inconsciente, as reminiscências parecem ter nesse momento estatuto semelhante uma vez que são determinadas de modo inconsciente: — o sintoma não surge ligado a impressões recentes, mas em conexão com lembranças das mesmas. (Ibid., p. 218) O que se atesta aí, digamos, agora em uma linguagem lacaniana, não é senão a divisão do sujeito. Existe um ‘não saber’ em jogo e ele divide o sujeito. Existe, além disso, uma descontinuidade psíquica e temporal da causa ao efeito, isto é, há uma hiância entre S1 (o trauma ou a emoção sexual) e S2 (a lembrança) de tal modo que é a retroação de S2 sobre S1 que faz com que S1 sofra o efeito de recalcamento. Em outros termos: o esquema da significação em geral, no qual só ao final do discurso pode-se perceber o que ele visava desde o início e da temporalidade do sintoma histérico é aquele do a posteriori (Vinciguerra, 1994, p. 47-48).

A afirmação de que “os histéricos sofrem de reminiscências” é reescrita na seqüência da teoria freudiana nos trabalhos sobre A Interpretação de Sonhos e sobre a Metapsicologia (principalmente no texto “O inconsciente”). Pode-se supor que a concepção do desejo como indestrutível levou Freud à conclusão de que o inconsciente ignora o tempo. No entanto, cabe indagar e, até mesmo, colocar a trabalho a possibilidade do sujeito livrar-se dessa atemporalidade do inconsciente, uma vez que as reminiscências, assim sustentadas, abrem caminho para a repetição. Em vista disso, deparamo-nos com a questão: seria a histérica capaz de esquecer-se desse pai, até então inesquecível?

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